segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Dilemas de uma moça de família

Começou a ter um caso com o professor de pilates, mas aquilo logo se tornou tolo. Voltou para a yoga, havia ali um novo mestre, capaz de ensiná-la inusitadas posições. Logo, porém, a macrobiótica e os malabarismos entre suas pernas lhe pareceram a maior de todas as tolices. Suas amigas falavam de sexo e aquilo era tolo. Um outro grupo, o das mamães, enumerava os prodígios dos filhos e aquilo era ainda mais tolo. Mesmo o grupo das devassas, que antes a divertia, era agora um aborrecimento só, até o tom em que confessavam suas aventuras fazia com que ela tivesse vontade de gritar como eram tolas. No fundo ela se perguntava se alguma coisa poderia durar em sua importância. Talvez o diamante que lhe prometera o marido...
Começava a entender por que aquelas duquesas que podiam tudo colecionavam jóias.

Cláudia

Cláudia era a minha colega mais linda. Você era muito linda, Cláudia, mas aí casou com aquele americano e isso nunca fez bem pra mulher nenhuma. Ontem sonhei que você voltava, a camiseta dois números menores, o corpo do século dos meus dezesseis anos, enquanto as outras lutavam para revelar alguma coisa entre os panos frouxos e acinzentados.
Sei que agora é tarde, babe, e talvez por isso eu te escreva essa pequena história.

A chamada

O telefone toca e a noite, de subito, perde o rumo da alvorada. O estômago ainda agora late, horror físico que os anos parecem incapazes de desgastar, consolo reservado mesmo às pedras mais duras. Cinco da manhã e a campainha segue, lancinante farol, suspenso pela mão que leva o aparelho ao ouvido. A torre então se apaga, e a voz - ele já não está - espalha a escuridão por todo alto-mar.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Atrás do reboco

Estava deitado no sofá quando um pedaço do reboco caiu do teto. Os farelos cobriram o cobertor sobre meu peito. Olho para o que parece ser um buraco no concreto e alguma coisa se mexe. A luz da tevê lança uma sombra pálida sobre os objetos. Uma poeira muito fina continua a cair e lembro que na infância o pó das asas das bruxas podia nos cegar. Vejo então o que parece ser uma bola negra se arrastar para fora da abertura. Já no ar, voando em minha direção, a criatura se abre e se revela: um morcego... uma mariposa.

A epifania de Fernando Lobo

No caixa, após a navalha do cartão, as duas mais belas palavras da língua portuguesa: transação aprovada.

Pílulas do Dr. Bergman

Uma forma de dormir de olhos abertos.

O rio à tarde

Por entre as folhagens, viu Juliana puxar o vestido sobre a cabeça, caminhando devagar em direção ao rio, sol líquido na tarde de verão, que lhe toca o corpo como um amante lento e constante e submisso e lhe sobe as canelas e os joelhos e as coxas. Ao agitar das folhas, Juliana volta a cabeça, julgando se tratar de um animal silvestre. De onde está não pode ver a fera e sua seiva, já misturada à seiva da planta.

O show não pode parar

Logo as cortinas iriam se abrir. Na escuridão, apenas o chiado dos amplificadores atestava a existência da continuidade da vida. A máquina de fumaça deu três ou quatro cusparadas, combrindo o palco de densa cerração.
Os olhos ardendo, vemos a cortina se abrir. Do outro lado, onde a vida acontecia sempre, não houve reação. A escuridão agora era total.

O pênalti

Silêncio. E a bola, que sempre lhe parecera leve, pesava agora um filho morto em seu braço. Era o último de uma série infinita de cobranças. A multidão atrás da goleira borbulhava como molho de tomate na panela. No meio da área, o círculo sem grama parecia uma ferida na pele do campo. Tomou distância o homem de confiança do treinador, fechou os olhos. Ao abri-los, o vestiário já estava vazio.