segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Espera

O som do chuveiro chega até o quarto através da porta entreaberta. Antes de encontrar o corpo que deslocará sua trajetória, este som lembra o da chuva quando golpe no calçamento. Logo vem o ruído abafado das roupas que se desfazem. A nudez da moça.
Que é morena e baixa, cabelos pretos e longos, uma franja cortada em camadas que lhe aviva os olhos um pouco rasgados, cujos traços lembram os de certas etnias da Europa central. Os seios devem ser pequenos, ao menos pelo que se pode adivinhar vestida. Estudou cinema e conversava com desenvoltura no bar. Tinha viajado pelo mundo e se gabava, com leve excesso, de sua temporada nova-iorquina. Agora meu chuveiro a toca, limpa-a, removendo a segunda pele formada pela sujeira do dia.
Deitado em minha cama, tento adivinhar as partes que ela toca pelas variações sonoras no fluxo da água. De olhos fechados desenho suas costas, seus ombros, a curvatura da lombar que abaixo se expande, as pequenas curvas nas junções de suas coxas, recolho os ecos de tudo como um sonar registra a posição exata de um perigo.
Soletro seu nome de consoantes e vogais repetidas, sortilégio que se coaduna à minha mão. Chega-me um cheiro agradável de sabonete, mel e limão, renovando-me a euforia e a cadência entre os lençóis.
A água pára. Pergunta que toalha usar, a voz um tanto estranha, mescla de sibilo e canto. Digo, ofegante, para pegar a da direita.
Pouco depois ela escancara a porta. Emoldurada pela luz do banheiro vejo o brilho feroz de suas plumas. Suas garras gigantes vão me dilacerar.
Entra no quarto e vem em direção à cama. Minha mão se acelera.
A palma.
A sereia.
A vertigem momentânea e líquida.
E então apenas a visão dos ladrilhos desertos e enxutos à minha espera.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Boletim do tempo

- Depois da chuva vem sempre o sol - disse a menina, faceira e inestática.
Para ela tudo era novo, as ruas de Londres, os vidros baços do pardieiro, lovely and charming para turistas.
- Vamos a Camden, vamos a Camden - gritou.
- Chove - respondi, cobrindo o peito murcho, as mãos ainda trêmulas do esforço.
- Mas olha ali, o céu já está clareando. Vamos, vamos logo!
Fé luminosa, crença singela de que o melhor virá com a simples seqüência dos dias...
- Infinito aparente que é a juventude.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Cristina

Logo que nos conhecemos, olhava Cristina da praia, constrangido por vê-la única entre tantos surfistas.
O mar agitado escondia-a de mim, movimentos que lembravam o das bandeiras que a massa agita nos estádios ou o vaivém dos corpos encobertos pelos lençóis.
Nas primeiras vezes, eu não sossegava, apreensivo, ansioso por sua sorte. Pouco a pouco, porém, meus olhos não mais acompanhavam suas manobras, como a nudez que se apaga na observação cotidiana. Talvez, por isso, quase não reconheci a prancha que veio morrer a meus pés.
Depois os rumores de um ataque de tubarão.
As equipes de resgate vasculhavam as águas, nenhum sinal de Cristina. Senti que me tocavam o ombro e me arrastavam até o posto salva-vidas.
Quatro horas depois abandonaram as buscas. Falaram alguma coisa sobre guarda-costeira.
Que não me fosse devolvida, pensei, como um carro roubado que mais bem estará na voz da telefonista da seguradora como o valor do prêmio pela perda total.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A velocidade do ar

Chegamos ao parapeito do terraço, nós, os franco-atiradores. Latas, passarinhos, placas, cachorros sarnentos, lá estávamos alçando mira, testando a precisão dos chumbos, eu que então não usava óculos, mas cuja visão perfeita nem por isso impedia que meu dedo vacilasse; e meu melhor amigo, que jamais hesitou, nem mesmo quando vinte anos depois estourou a própria cabeça com um balaço.