sábado, 27 de março de 2010

Luta de classes

Furibundo ao saber que a filha caçula, matriculada no mais seleto liceu da cidade, fora flagrada cabulando aula para manter intercurso sexual com um motoboy, o ex-sindicalista, explodiu:
- Como você pôde fazer isso com o seu pai?
- Relaxa, velho...
- Não posso acreditar. Por que não namora um dos teus colegas, gente como a gente.
- Toma.
- O que é isso?
- O jornal de ontem.
O homem se reconheceu na foto. Acima, em garrafais, a manchete reproduzia o que ele dissera e que só era verdade nas entranhas da filha: "A luta de classes é coisa do passado".

Reciclagem

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Ancorado em meio à cozinha descarnada, o professor de meia-idade bebia um copo de leite com os olhos fixos nos ponteiros do relógio de aço escovado. Seus pés descalços pareciam feitos do mesmo mineral do piso. Mais uma vez ele não iria conseguir: havia quase um ano que não chegava antes de tocar o sinal do primeiro período. Depositou o copo vazio sobre o tampo, encheu de água o interior da embalagem longa vida, deixou o líquido escorrer na pia, amassou a caixa e abriu a pequena lixeira onde depositava os materiais recicláveis.

Meia hora depois, ninguém o viu entrar na sala. Apesar de seus apelos, os alunos mantiveram inalterada sua algaravia selvagem. Os que estavam em silêncio, traziam os ouvidos obstruídos por fones negros ou brancos, o que talvez fosse uma solução. Começou a rabiscar algumas coisas no quadro. De soslaio, pôde ver que não havia nenhum caderno aberto. Um café poderia salvá-lo, mas havia sempre um longo caminho até o recreio.

Mais do que nunca, pareceu-lhe um milagre ouvir o terceiro sinal. Ao entrar na sala dos professores, foi surpreendido por uma nova funcionária da supervisão que exortava os docentes a entrarem na campanha que a escola faria junto aos alunos pela "conscientização da importância de separar o lixo, afinal, pessoal, o futuro do nosso planeta está ameaçado." Ele tentou sorrir, seria preciso vencer a assembleia para chegar à térmica de café. De imediato, todos pareciam comprometidos no combate ao aquecimento global. "Temos que pensar em nossos filhos, em nossos netos! Cabe a escola assumir um papel de liderança!"

2
De volta ao apartamento, olhou as duas cestas de lixo sobre o tampo. Dentro da menor ainda estava a caixa de leite. Havia também dois copinhos de iogurte e uns pedaços de papel-filme. Abriu a outra cesta maior, onde apodreciam cascas de bananas, tomates podres e pedaços dormidos de pão. Com paciência, como quem misturasse as pedrinhas de um velho jogo de víspora, foi colocando todo o lixo em um só saco.
Não há qualquer registro de que tenha voltado a se atrasar para o primeiro período.

domingo, 15 de março de 2009

Elegia

E então percorres a seara aberta dos campos
algodão tecido de penumbra
serpente, tu, altiva, gazela,
em fração de segundo que meu desejo alastra
primavera que não sentes,
tens um colibri no peito
presas e fome que escondes
mas que depois revelas:
lisa sobre mim,
planta que recobre as vastas extensões
e que deixa o homem conhecer o íntimo de suas seivas.
Saber o sumo das águas que te lubrificam
tu que em instantes já és minério,
arabescos de chamas que tuas unhas
cinzelam em minha pele eleita
farpa
e flor
e liberdade
e sangue
aquilo que é para o corpo
a única certeza do verdadeiro amor.

Deus é amor

O barulho da avenida lá embaixo não tinha sono. Do rio chegava um cheiro de barro e sujeira. Fechou com raiva as janelas, mergulhou no mofo que colonizara os lençóis, apertou as pálpebras. A cada dez segundos o quarto se banhava com uma luz mortiça, que durava outros dez segundos. Será que naquela cidade inteira não haveria ninguém que pudesse salvá-lo? De olhos abertos, dez segundos de luz, dez de escuridão, estranho farol que parecia guiar navios que nunca aportavam. O que poderiam carregar? Prostitutas? Ora, elas bem se viravam a pé, e seus convites ainda estavam longe de cessar. Desejou uma cortina, venezianas sem frestas, tijolo e argamassa para vedar para sempre as aberturas. Mas isso seria se afogar. Cobriu os olhos com o braço, a cidade é como um oceano, imensidão contida e irrequieta, sentiu o prédio jogar, talvez só ele sentisse isto em todos aqueles apartamentos habitados por gente ensebada e indiferente, seus roncos o ronco dos motores; e as luzes, que só ele via àquela hora, lanterna a girar, faziam com que pensasse na nobreza do gás devorada inutilmente.
Ofegante, ergueu-se da cama num salto e escancarou as folhas de madeira...
Contra o céu já quase azul, o farol não piscava mais.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O broto

Outubro chegou, e só então os brotos pontilharam de verde os galhos da árvore no quintal. A menina acompanhava do quarto o atraso da primavera. Se até a natureza podia demorar um mês a mais para vir...

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Na praia

Acabe logo com isso, sinalizavam as amigas estendidas ao sol em seus biquínis multicoloridos. Pela primeira vez na temporada, seus pés tocavam a areia firme e plana, que tanto a sul quanto a norte parecia se estender imutável ao infinito. Sentia o novo peso na parte superior do corpo, a estranha oscilação que era a um só tempo incômoda e deliciosa. Todos a olhavam passar, os caras mais gatos, uns tios com olhos sacanas, as gurias estavam certas, não fazia sentido continuar com ele. O verão passa rápido demais, era um desperdício estar presa, e, de mais a mais, era natural ela procurar coisa melhor.
Avistou-o mar adentro, tentando pegar jacaré. Sentindo que a coragem insuflada pelas outras podia lhe escapar, avançou com mais velocidade. Ia com a água pelos joelhos quando ele a avistou, deixando que uma onda o levasse na direção dela. Ao se erguer, não pôde deixar de reparar naquela novidade que ainda não tocara. Tem que desinchar, ela dizia, sempre escapando ao toque. Seja direta, e se ele chorar, diga que o problema não é com ele, é contigo, ecoou o conselho da amiga de biquíni preto. Que foi, que está me olhando?, ele perguntou.
Ela respirou fundo e seguiu conforme o planejado. Foi direta e irredutível, em dois minutos apresentou cinco razões para não continuarem juntos e, para completar (o que lhe pareceu caridoso e uma demonstração de grandeza de espírito), acrescentou que o problema era com ela.
O rapaz ficou sem reação. Teve vontade de se agarrar àqueles peitos, ele que tinha passado um mês inteiro esperando, que acompanhara toda a recuperação, e agora tudo era tão simples, ficamos assim e pronto, e lá ia outro tocar no que era dele.
A menina beijou-lhe o rosto, fez um carinhosinho em seu ombro e se virou. Caminhou devagar de volta à praia, o coração leve, lá estavam elas, logo reconheceriam sua vitória...
O coração queimando, Guto saiu da água, viu à distância como ela se refestelava na frente das outras. Sentiu a visão turvar. Cravou os dedos fundos na areia seca além da rebentação. As mãos conjuradas apanharam um mastro de guarda-sol abandonado, na ponta o encaixe de metal coberto de ferrugem.Imersa em sua alegria, não percebeu a sombra veloz que cruzou a areia.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Como naquele velho bolero

Mal chegou à pista de dança e se viu cercado por uma mulher. Acabaram se beijando. Alguns minutos depois, já uma outra lhe pegava no braço. Mais um beijo. Depois duas amigas que vieram juntas, coladas cada qual em uma de suas coxas, cobrindo-o de carícias indecentes. Passavam todas da faixa dos trinta. Exceto o dado cronológico (que não podemos explicar), pode-se depreender da fábula acima que a liberação dos costumes veio a permitir a realização da ânsia de beijar daquele velho bolero.