segunda-feira, 28 de julho de 2008

Naquela manhã

Quando a nova professora entrou na sala de aula, percebi que minhas tardes seriam plenas de alegria e que ao menos por um mês eu estaria livre da censura do olhar da dona da banca de revistas.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Latebra

Viu a menina negra e mutilada, que a duras penas tinha conseguido escapar de sua nação ominosa e chegar ao exterior onde escreveu um livro sobre seus sofrimentos.
Viu o órfão oriental que tinha sobrevivido entre os escombros de uma biblioteca onde aprendeu a ler com os rudimentos que uma professora abnegada lhe ensinara na primeira infância.
Viu a jovem cuja brilhante carreira artística fora tolhida pelo regime totalitário e que acabou lavando o chão na casa do ditador até que seus escritos fossem descobertos por uma alma caridosa.
Viu o índio que tinha escapado ao massacre de sua tribo na selva e que depois dominou a linguagem dos brancos para encher páginas de contundente denúncia.
E então os manuais das mulheres oprimidas ou libertárias (o que lhe parecia a mesma prisão). E depois os dos gays e seu indisfarçável cansaço em lutar por direitos tão antigos como o casamento.
Havia um lugar, porém, onde ainda poderia encontrar refúgio.
Vencendo as empoeiradas caixas dos saldos do prédio decrépito de uma rua lateral do Centro, chegou a prateleiras que ainda lembravam de Conrad, Maugham, Dinesen, Rulfo, Nin e Wilde.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Vanilla

O cinto branco e grosso, que lhe expunha a diminuta cintura, comprimia não sei quantas bolinhas brancas do vestido rodado. Uma gota leitosa, clara como a tarde, começou a escorrer bem junto aos largos botões do peito, até ser plenamente absorvida pelo algodão. A língua rosada da moça, fremente e certeira, consumia o luminoso amarelo, já esfera disforme na boca do cone, e eu, que até então desejara tantas outras moças semelhantes a ela no passeio, senti brotar, como um pranto, um sentimento paternal.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Na fábrica

Foi quando a fábrica estava à beira da falência que o dono descobriu uma maneira de usar a mão de obra alquebrada que tantos prejuízos lhe trouxera ao longo dos anos. A nova exploração de certos compostos orgânicos por laboratórios do norte da Europa, carentes de matéria-prima, se afigurava como real salvação.
Sabia-se que os estagiários e aprendizes, por seu vigor físico, eram duas vezes mais produtivos que os velhos operários, manhosos e corrompidos, salvaguardados pela obsoleta legislação trabalhista que não permitia um número maior de jovens junto às máquinas. Para sorte do dono (a quem devemos o pão nosso), a combinação de solo, insolação e linhagem impedia que os chineses se tornassem competitivos.
- Cada um deve dar a sua parte - conclamou o dono. - Não quero ninguém fazendo corpo mole por aqui.
Mas, apesar de tudo, os excelentes números iniciais vinham definhando. Os insumos americanos, eficientes num primeiro momento, mostraram-se pouco nutritivos. Um consultor foi chamado.
- Prometeram novidade - disse um dos operários, três dedos perdidos ao longo da carreira.
- Acho que tão pondo remédio na nossa comida - disse outro.
Acoplados aos dispositivos, esperavam que a tela se iluminasse.
Em vez disso, surgiu o especialista contratado. Fez-se um foco de luz. Voltando-se para os bastidores, bateu apenas uma palma. Sabia que no mundo industrial o mise-èn-scene era indispensável.
Um exército de garotas locais, as ancas fortes, invadiu o palco. Com outro sinal, ergueram-se as batidas frenéticas, tambores e engrenagens.
A reação dos trabalhadores foi imediata.
Orgulho nacional, a música popular não deixa de gerar divisas.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Misericórdia

Abrigado da chuva, a umidade, no entanto, não deixava de embaçar a lente do óculo. Na calçada a cem metros, o homem de terno mergulhou um pé inteiro numa poça que se formara entre dois blocos do pavimento. Sentiu nos pés secos a meia molhada do outro. E ainda que estivesse quase cego, puxou o gatilho.

terça-feira, 1 de julho de 2008

27/06/2008

- Assim que a sociedade sempre está retratada na obra literária. A arte deve ser política, caso contrário está a serviço da estagnação burguesa!

El gaucho

Na estrada deserta, reta infinita cortando a pampa, desponta um casebre em meio ao verde. Reduzo um pouco a velocidade do carro, gosto de cenas pitorescas. Na soleira da porta, um gaucho, o mate equilibrado sobre a pança, amarga a boca com os olhos fixos no horizonte.
De súbito, o tempo parece transcorrer mais devagar. Vejo a coxilha ao longe, esqueço-me das cidades. Uma brisa me toca o rosto e sinto um calor nos dedos. Um estranho metal está em meus lábios. Um carro passa na estrada reduzindo a velocidade.