domingo, 15 de março de 2009

Elegia

E então percorres a seara aberta dos campos
algodão tecido de penumbra
serpente, tu, altiva, gazela,
em fração de segundo que meu desejo alastra
primavera que não sentes,
tens um colibri no peito
presas e fome que escondes
mas que depois revelas:
lisa sobre mim,
planta que recobre as vastas extensões
e que deixa o homem conhecer o íntimo de suas seivas.
Saber o sumo das águas que te lubrificam
tu que em instantes já és minério,
arabescos de chamas que tuas unhas
cinzelam em minha pele eleita
farpa
e flor
e liberdade
e sangue
aquilo que é para o corpo
a única certeza do verdadeiro amor.

Deus é amor

O barulho da avenida lá embaixo não tinha sono. Do rio chegava um cheiro de barro e sujeira. Fechou com raiva as janelas, mergulhou no mofo que colonizara os lençóis, apertou as pálpebras. A cada dez segundos o quarto se banhava com uma luz mortiça, que durava outros dez segundos. Será que naquela cidade inteira não haveria ninguém que pudesse salvá-lo? De olhos abertos, dez segundos de luz, dez de escuridão, estranho farol que parecia guiar navios que nunca aportavam. O que poderiam carregar? Prostitutas? Ora, elas bem se viravam a pé, e seus convites ainda estavam longe de cessar. Desejou uma cortina, venezianas sem frestas, tijolo e argamassa para vedar para sempre as aberturas. Mas isso seria se afogar. Cobriu os olhos com o braço, a cidade é como um oceano, imensidão contida e irrequieta, sentiu o prédio jogar, talvez só ele sentisse isto em todos aqueles apartamentos habitados por gente ensebada e indiferente, seus roncos o ronco dos motores; e as luzes, que só ele via àquela hora, lanterna a girar, faziam com que pensasse na nobreza do gás devorada inutilmente.
Ofegante, ergueu-se da cama num salto e escancarou as folhas de madeira...
Contra o céu já quase azul, o farol não piscava mais.